Na era da transparência, não basta parecer: é preciso ser — e parecer. Essa é uma das provocações centrais do novo livro de Vânia Bueno, jornalista, consultora e uma das principais referências em comunicação corporativa estratégica no Brasil.
Com mais de três décadas de atuação ao lado de lideranças e organizações, Vânia mergulha nas intersecções entre governança, sustentabilidade e comunicação, propondo um novo olhar sobre o papel das organizações em um mundo onde reputações se constroem — e se desfazem — em tempo real.
Em entrevista exclusiva à Caliber, ela compartilha os aprendizados que emergiram ao longo da pesquisa para a obra e analisa os impactos profundos da fragmentação da autoridade, da exigência crescente por coerência e da importância de uma comunicação capaz de traduzir valores em vínculos.
“Comunicação na governança – parecer e ser na era da transparência” é mais que um livro; é um convite ao diálogo. “Espero sinceramente que ele provoque boas perguntas, porque a conversa está apenas começando. E é no espaço das boas perguntas que a superação acontece”, diz a autora.
“Transparência não significa ‘contar tudo para todos’, mas sim compartilhar o que é relevante para cada stakeholder.”
Em seu novo livro, você sustenta que o atributo “ser e atuar de modo transparente” deixou de ser uma escolha das organizações e passou a ser uma exigência da sociedade. Ele, porém, impacta de forma diferente os diversos stakeholders. Como essa mudança se manifesta e afeta cada um deles: colaboradores, imprensa, órgãos públicos, consumidores e sociedade em geral?
Sim, acredito que na Era da Transparência qualquer esforço para distorcer ou omitir fatos é inócuo e perigoso. No mundo das redes, em que todos produzem, editam e distribuem informação, transparência deixou de ser uma escolha — passou a ser condição. É um dado de contexto, e todos somos afetados por isso.
O acesso à informação mudou as relações de poder. A força, o domínio e a influência — antes concentrados nas mãos de poucos — agora estão fragmentados e fora de controle. Um anônimo pode fortalecer ou destruir reputações na velocidade de um clique.
Esse cenário traz desafios enormes para o relacionamento com os diversos públicos. Transparência não significa “contar tudo para todos”, mas sim compartilhar o que é relevante para cada stakeholder. Investidores, consumidores e colaboradores têm interesses e expectativas diferentes. O desafio está tanto no conteúdo quanto na forma: é preciso encontrar a linguagem certa, o nível de profundidade adequado e a frequência ideal para cada perfil.
A personalização exige atenção constante, mas há um fator comum e essencial: a construção de vínculos de confiança. Ser transparente é apresentar a verdade dos fatos, no tempo e na medida do interesse e da necessidade de cada público. Se errou, admita. Se acertou, compartilhe com convicção. Na Era da Transparência, não basta parecer — é preciso ser e parecer.
A obra reflete sobre duas funções fundamentais para a construção e a proteção da reputação: Comunicação e Governança. O quanto essas estruturas estão preparadas para a “era da transparência”? O que deve ser entendido como prioridade e quais os maiores desafios?
Minha percepção é que nenhum de nós está plenamente preparado para as transformações intensas que estamos vivendo. Fomos formados a partir de uma visão linear de mundo, baseada em causas e consequências previsíveis — um modelo que nos trouxe até aqui, mas que se mostra incapaz de nos levar adiante.
Acredito que o maior desafio hoje é desenvolvermos um modelo mental sistêmico, que reconheça que estamos inexoravelmente conectados e interdependentes. As tecnologias da informação apenas evidenciaram essa verdade estrutural da vida.
As organizações se tornaram reféns de resultados tangíveis e de curto prazo. Mas os desafios globais — como mudanças climáticas, desigualdade e polarização — são reflexo de uma visão fragmentada, que separa o que é, na verdade, interligado.
Neste contexto, a governança precisa assumir um papel mais integrador e sensível ao longo prazo, enquanto a comunicação deve atuar como radar e bússola — ouvindo, traduzindo e conectando. O primeiro passo talvez seja o reconhecimento humilde de que “não sabemos”. Mas não um “não sei” passivo — e sim um “não sei” que quer saber. Que está disposto a ouvir, a dialogar e a construir respostas novas para perguntas que mudaram.
Humildade, abertura e diálogo são as melhores trilhas para a inovação e a evolução.
A forma como as crises se desenvolvem mudou muito desde que o digital entrou em cena. Consequentemente, a maneira de preveni-las e geri-las também. O contexto fica ainda mais complexo quando pensamos na polarização crescente e na popularização da inteligência artificial. Como as empresas devem se preparar para esse cenário e atuar diante dos potenciais riscos?
Atualmente, qualquer posicionamento nas redes sociais, certo ou errado, gera discussões infindáveis. Todos querem opinar, julgar, defender seus pontos de vista e solucionar situações de conflito. A IA vai potencializar ainda mais tudo isso.
Para evitar que os mal entendidos e as crises aconteçam, seja em um post, palestra, entrevista para um jornal ou podcast, ou em rede nacional, sugiro seguir alguns passos:
Em primeiríssimo lugar, analisar a audiência. Com quem você vai falar? Analisar em detalhes a cultura, classe social, demandas daquele público etc. E, em seguida, definir as mensagens-chave que serão comunicadas naquele momento. Entender se estas mensagens podem causar qualquer impacto naquele grupo, seja positivo ou negativo. Ou seja, mapear os riscos e determinar o objetivo e a estratégia da comunicação.
Em segundo lugar, e igualmente importante, analisar o contexto, o ambiente e o timing, e se perguntar: devemos dar tal informação, para tal público, nesta referida data? Qual impacto poderá causar? Esta simples reflexão gera um valioso mapeamento de riscos para que sua mensagem seja entendida, apreciada e reverberada positivamente.
Em terceiro lugar, depois da análise dos riscos e das mensagens-chave, preparar um Q&A, documento com possíveis perguntas que poderão vir após sua fala. Este documento, já com sugestões de respostas plausíveis, te apoiará no momento que os questionamentos surgirem, seja por parte da opinião pública, da imprensa, de investidores, analistas de mercado, de colaboradores e da sociedade como um todo.
E por fim e não menos importante, certificar-se de que o porta-voz está treinado e preparado para a comunicação da informação.
Parece complexo seguir todas estas etapas, mas se você deseja ter o mínimo de segurança, conquistar resultado positivo na sua audiência e obter uma boa repercussão é necessário investir algumas horas na preparação dos seus discursos, sejam eles para uma ou um milhão de pessoas.
“Minha percepção é que nenhum de nós está plenamente preparado para as transformações intensas que estamos vivendo. Fomos formados a partir de uma visão linear de mundo, baseada em causas e consequências previsíveis — um modelo que nos trouxe até aqui, mas que se mostra incapaz de nos levar adiante.”
Um diagrama desenvolvido pela Caliber ilustra o surgimento de crises no abismo entre discurso e prática. O que a atraiu nesse modelo? Pode explicar como ele se encaixa no discurso do livro?
Durante a pesquisa para o livro, busquei modelos que expressassem com clareza um ponto essencial da obra: a distância entre o parecer e o ser — e os impactos disso sobre reputação e valor.
O diagrama da Caliber traduz essa dinâmica de forma clara e didática. Ele evidencia que é a coerência e a consistência que sustentam culturas resilientes e percepções de confiança junto aos stakeholders. Mais do que uma boa metáfora, é uma ferramenta que ajuda a visualizar algo que frequentemente é sentido, mas nem sempre nomeado.
É papel da governança definir o propósito e ser guardiã do “ser”. Cabe à comunicação tornar esse “ser” reconhecido e valorizado. Entre eles, o compliance assume um papel fundamental, zelando por ajustes e correções que garantem integridade ao sistema.
Para a obra, você entrevistou 18 especialistas em Comunicação, Sustentabilidade e Governança. Quais os principais insights teóricos e práticos derivados desse esforço?
Tive o privilégio de ouvir profissionais incríveis em entrevistas reveladoras. Foram muitos aprendizados, mas dentro do contexto desta conversa, destaco três insights que considero essenciais:
- A comunicação é tema estratégico de primeira ordem e deve ser reconhecida e tratada com essa relevância no âmbito da governança.
- Todos nós estamos aprendendo a lidar com as novas exigências da comunicação. A velocidade das transformações, a amplificação das vozes e o nível de exposição trazem desafios inéditos. Precisamos desenvolver novos repertórios, fortalecer a escuta e construir espaços de diálogo mais conscientes. Mais do que um diagnóstico, há um convite ao aprimoramento coletivo.
- Apesar dos desafios, há sinais de transformação. A disposição crescente para o diálogo, a valorização da escuta e o reconhecimento da comunicação como pilar da governança são indícios de que podemos construir organizações mais conscientes — se escolhermos a coerência como guia.