¨A prevenção de crises não pode ser tratada na empresa como um acessório. Ela deveria se apoiar numa cultura que deve ser disseminada, cultivada e, mais do que isso, integrada à governança, irradiando para toda a organização¨, afirma João José Forni
Jornalista e Consultor de Comunicação com foco em gestão de crises, Forni destaca os desafios que os governos e as organizações têm pela frente diante do mundo multifacetado em que vivemos.
Confira:
– Em meio à volatilidade do mundo atual, você acredita que estamos realmente enfrentando tempos de incerteza, ou será que o sentimento de urgência é influenciado pela velocidade da vida moderna? Como este contexto impacta as organizações?
¨Não há dúvidas de que enfrentamos tempos de incerteza, exatamente porque o mundo dos negócios e das próprias relações humanas é cada vez mais volátil e incerto. Até mesmo pela velocidade com que a ciência, a tecnologia, os meios de comunicação e os costumes evoluem. No passado, e falamos do fim do século XX, as empresas não tinham tantos desafios como hoje. Era mais fácil ter o controle de uma organização, porque a gestão não tinha tantas ameaças. Desde a década de 1950, o mundo atravessou um período de relativa paz. Paradoxalmente, nos dias atuais, liderar e gerir as empresas está mais difícil porque novas competências são exigidas, colocando pressão pelo conhecimento, desempenho, sucesso e compromisso social.
Há pensadores e autores como Steven Pinker e Yuval Harari que demonstram um certo pessimismo quanto aos rumos do mundo, até mesmo o ceticismo em relação às instituições modernas pela incapacidade de responder às demandas e conceber um propósito superior.
Enquanto muitos países da África e até da Ásia ainda lutam para ter uma internet mais rápida, ou seja, o mínimo necessário para se conectar, no outro lado estamos discutindo o que a Inteligência Artificial pode fazer com as pesquisas, a ciência, a comunicação e até nossas escolhas.
Essa nova configuração impacta todos os tipos de relações, sejam profissionais ou pessoais. Até os líderes precisam mudar, diante dos desafios que os governos e as organizações têm pela frente. Há uma premência por mudanças, como se os próximos anos fossem uma ameaça, não uma oportunidade. Com isso, as organizações precisam acompanhar essas mudanças, sujeitas muito mais a crises que não decorrem necessariamente delas. Decorrem dos múltiplos fenômenos que o mundo moderno e a natureza acabam produzindo.
Passada a pandemia, mudanças climáticas mostram que o mundo do século XXI vai ser marcado por catástrofes naturais, por guerras, disputas políticas e, provavelmente, por mais crises econômicas. E, em relação às mudanças climáticas, o homem tem muito pouco controle. O que significa mais risco para as pessoas, para as empresas e os governos.¨
– Jonathan Boddy, especialista em Gestão de Crise, argumenta em artigo publicado no seu site que a reputação de uma organização depende, em grande parte, das percepções das pessoas sobre ela. Você concorda com essa afirmação?
¨Sim. Um dos ativos mais importantes de uma organização é a reputação. E ela é construída com base nas percepções dos stakeholders, do mercado e da própria sociedade. E, como esse capital reputacional pode ser mantido, se as ameaças são constantes? Fazendo não apenas as coisas certas, mas fazendo direito, como diz Charles Fombrun, professor nos EUA. E ao longo do tempo.
A reputação tem o dom da perenidade, diferente da imagem que pode ser efêmera, construída e arranhada num curto espaço de tempo. Hoje, nesse mundo multifacetado em que vivemos, a reputação das empresas é construída se alicerçando em vários pressupostos, alguns deles nem eram levados em conta, no passado. Produtos e serviços, inovação, cultura organizacional, governança, responsabilidade social, liderança e desempenho financeiro, são pilares importantes da reputação. Também pela forma como a empresa se identifica na sociedade. Se tem compromissos com os pressupostos da ESG, ou seja, trata-se de definir se uma empresa é socialmente comprometida, sustentável e corretamente gerenciada.¨
– Muitas crises tiveram origem em situações de risco que não foram devidamente tratadas. Por que, em sua opinião, as empresas ainda têm dificuldades em agir de maneira preventiva?
¨Essa pergunta nos leva a outra: por que as empresas, tanto pequenas como grandes multinacionais, enfrentam crises graves, apesar de tudo o que se fala, se ensina e se alerta? Exatamente porque a prevenção de crises é apenas uma intenção, não um propósito. Riscos políticos, econômicos, sociais não são levados em conta. Ou pelo menos não com o profissionalismo que precisa. Por que tantas empresas abrem e menos de 50% delas continuam existindo após cinco anos? Essa mobilidade tem muito a ver com problemas de governança, de gestão, de ‘compliance’, de análises erradas, o que reflete o mundo em que estamos vivendo: volátil e incerto.
Outro motivo seria pela autossuficiência. Algumas organizações se acham imunes às crises. Confiam na tradição, na experiência. Atingiram um patamar tão alto que as crises podem estar até contempladas nos riscos da empresa, mas não existe uma gestão de crise institucionalizada e compartilhada. Alguns autores chamam isso de “a arrogância do líder”, grandes empresas, com alta tecnologia, produtos de última geração, geralmente no topo da cadeia de produção, de certa forma não priorizam o cuidado com as crises. E, paradoxalmente, apesar de grandes, de terem o controle de mercado; faturamento elevado; executivos regiamente pagos, elas podem escorregar nas crises, como aconteceu com várias empresas multinacionais nos últimos anos.
A prevenção de crise não pode ser tratada na empresa como um acessório. Ela deveria se apoiar numa cultura que deve ser disseminada, cultivada e, mais do que isso, caminha pari passu com a governança, por decisões administrativas que a irradiam para toda a organização. O risco, as ameaças existem. Mas não basta conhecê-lo, mapeá-lo. É preciso ter um plano de crise consistente e factível.¨
– Como você sugere garantir uma comunicação eficaz durante uma crise, especialmente quando a desinformação e a incerteza são difundidas?
¨De início, tudo que a empresa diz numa crise ou deixa de dizer é comunicação. A empresa deve ter o controle sobre tudo que é publicado em relação à sua marca, não importa se é na crise ou nos tempos normais. Naturalmente, nas crises há maior risco e ameaças à reputação. A empresa não pode deixar a mídia nem as redes sociais ou outros interlocutores assumirem o controle e conduzirem o discurso da crise. Se existem coisas ruins, até constrangedoras, para serem expostas no caso de uma crise, que sejam. Se houve erro, deve-se assumir e mostrar o que a empresa vai fazer para nunca mais acontecer. Duas palavras são fundamentais na comunicação de crise: transparência e verdade.
Para a comunicação ser eficaz e compromissada com a verdade, os gestores precisam ter todas as informações sobre a crise, sem restrições. A comunicação precisa ter uma estratégia para contar o que aconteceu, no timing e na forma mais recomendada. E um porta-voz treinado, com o domínio completo dos fatos que vai explicar. Um bom porta-voz, com experiência e capacidade de comunicação representa meio caminho andado para preservar a reputação. Para isso, é necessário que os gestores das empresas se convençam de que eles até podem ser muito bons na gestão de negócios, como CEOs, diretores ou conselheiros. Mas precisam também dominarem a comunicação, principalmente para encarar a mídia, em entrevistas sobre temas controversos, como nas crises. E, com isso, amenizarem eventuais arranhões à reputação.¨
– Qual é, na sua visão, o papel da tecnologia e da análise de dados no gerenciamento de crises?
¨Dados, informação, trabalho de inteligência, tudo isso precisa ser considerado numa situação de crise. Quanto mais avançada a empresa estiver na área tecnológica, mais qualificados serão os dados fornecidos com rapidez, que a crise exige, e com melhor qualidade. E isso só se consegue com investimentos em tecnologia. Ela dá suporte aos mecanismos de recuperação, se for durante uma crise. A crise, como se recomenda, não bate com burocracia. Para gerenciá-la, a empresa precisa ser ágil e proativa. Precisa estar preparada. Quanto mais preparada, sairá da crise com mais rapidez e com menos custo. Não é incomum as áreas estratégicas sonegarem informações, principalmente em eventos negativos, pela dificuldade de obtê-los com rapidez, ou por questões de sigilo, ou até mesmo para preservar alguém. Mas a crise exigirá sempre que a empresa se exponha, reconheça alguma fragilidade, onde houve o erro. Não podemos esquecer que o erro humano (o termo clássico é esse mesmo) representa mais da metade dos casos de crises empresariais.¨
– Em seu livro, ¨Gestão de Crises e Comunicação¨, você afirma que as grandes crises têm um começo bem discreto. Como então perceber os sinais de alerta antes que seja tarde demais?
¨Há uma corrente que defende a tese de que muitas crises, principalmente megaeventos, como a II Guerra Mundial, o 11 de setembro, nos EUA, chegam de surpresa. Mas eu sigo a escola que preconiza: a maioria das crises dá sinal de que irá acontecer. Empresas preparadas, que sabem e/ou mapearam o que poderá desencadear uma crise e que sabem o que irão fazer nos momentos conturbados, conseguem evitar grandes crises e sair mais rápido e com a reputação preservada. E não raro, fortalecida.
Como as crises fazem parte da natureza das organizações, e dificilmente as empresas deixarão de ter crises no mundo dos negócios, a diferença do sucesso sempre será daquelas que não foram surpreendidas. Jonathan Bernstein, especialista em gestão de crises, nos EUA, autor de livros sobre crises corporativas, diz que em 95% dos casos, nos quais ele atuou como consultor, durante anos, havia sinais, às vezes quase imperceptíveis, de que elas poderiam acontecer.
Em resumo, organizações com um plano de gestão de crises, associado a um manual de comunicação, sabendo o que irão fazer na hora da crise, estarão, naturalmente, mais preparadas para enfrentar tempos difíceis, como o que estamos atravessando.¨
Sobre João José Forni
João José Forni é jornalista e Consultor de Comunicação, com foco em gestão de crises. E professor de pós-graduação na área de comunicação das organizações. Autor do livro “Gestão de Crises e Comunicação – O que Gestores e Profissionais de Comunicação Precisam Saber para Enfrentar Crises Corporativas – Atlas (2019, 3a. edição). Prêmio Cultura Econômica de 2013.